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Artigo: CLT 70 anos - Uma História contada e recontada


CLT 70 ANOS – UMA HISTÓRIA CONTADA E RECONTADA

Ivan da Costa Alemão[1]

Quando a CLT foi criada em 1º do maio de 1943 talvez seus criadores não esperavam que ela fosse ter um significado tão forte. Ela é, antes de tudo, uma referência, um símbolo, tanto para aqueles que a apoiam como para aqueles que a criticam. Os símbolos facilitam as manifestações dos seus adeptos e dos seus críticos, pois, com poucas palavras podem dizer que “tudo de bom” ou “tudo de ruim” acontece em função daquela “coisa”. Na década de 90, com a possibilidade da flexibilização e desregulamentação das leis trabalhistas, a CLT passou a ser um símbolo ainda mais forte. Para os neoliberais, ela representava privilégios, o custo Brasil com altos encargos, o desemprego. Para os trabalhistas defensores de sua manutenção, ela passou a ser o bastião de resistência, o mínimo a ser garantido ao trabalhador, a garantia de o negociado não suplantar o legislado. Vivemos então certo maniqueísmo em que pouco espaço existia para outras opiniões.

Penso que não devemos ver a CLT algo monolítico, em que a adotamos integralmente, ou a rejeitamos completamente. Certamente ela é um corpo de lei que, como qualquer outro, deve ser analisado com o devido senso crítico histórico. Primeiro, porque ela não é a mesma de quando criada em 1943. Não só em função de suas próprias atualizações legislativas, mas porque a sociedade mudou, assim como seus intérpretes. Um texto de lei sofre não só as mudanças textuais, mas as interpretações mesmo quando o texto permanece. Não existe lei em si mesmo, mas lei para sociedade. Segundo, porque hoje existe um enorme corpo de legislação trabalhista criado ao lado da CLT, que não pode ser desprezado.

Pretendo aqui traçar um breve roteiro histórico da CLT nestes 70 anos, passando por algumas “estações” econômicas e políticas de nosso país.

Ainda em 1926, antes mesmo da Revolução de 1930, a nossa Constituição Federal sofreu uma reforma que entre outras coisas, atribuiu à União a competência exclusiva para legislar questões relacionadas a trabalho. Isso foi um primeiro grande passo para unificar a legislação do trabalho, que era criada pelos estados da federação.

A CLT veio a ser criada quase que no final do Estado Novo (1937-45), procurando dar unidade às diversas normas que tratavam da relação de emprego, além de reunir leis que tratavam de temas afins. Algumas leis importantes do Estado Novo foram integradas na CLT, como a  da criação a da Justiça do Trabalho (Decreto nº 1.237, de maio de 1939); a da criação do enquadramento sindical (Lei nº 1.402, de 5/7/1939), e a da criação do imposto sindical (Decreto-Lei nº 2.377 de 1940). Outras normas foram acopladas à CLT, como a que tratava da jornada de trabalho nos Decretos da Indústria e  do Comércio; a lei de férias; lei da carteira de trabalho; regras contratuais dos regulamentos dos Institutos de Aposentadoria e Pensão, como a estabilidade e justa causa; normas influenciadas pela OIT, como o menor e o da mulher. Embora a CLT pretendesse apresentar uma única regras de contrato de trabalho para todos os trabalhadores, já em seu corpo absorveu uma sérias de regras especiais como a dos bancários, ferroviários, etc.

Acredito que foi realmente inovador a regra da CLT sobre nulidade (art. 9º, art. 468, etc). Outra regra importante é a vinculação direta do trabalhador com a empresa, espelhada na denominada sucessão trabalhista, fruto da doutrina institucionalista que prevalecia na comissão técnica de redação. E são justamente estas regras que “resistem bravamente” contra a precariedade do trabalho e fragmentação das relações de trabalho. Projeto surgiu na década de 90, sem sucesso, tentando aplicar a CLT apenas naquilo que não fosse negociado, o que a tornaria uma lei supletiva, como ocorre com as leis civis sobre contratos. Já a sucessão trabalhista foi abalada com a nova lei de falência na década de 2010.

O fim do Estado Novo e a consequente democratização do país não modificaram a CLT, como era esperado por muitos. A principal mudança dessa época foi a legalização do direito de greve, antes proibida pela Carta de 1937, embora a nova Constituição (de 1946) remetia-a a regulamentação por lei infraconstitucional, veio a ser bem restritiva.

Logo a pós a queda de Vargas, durante o breve período do presidente José Linhares, foram criados dois Decretos-leis ( nºs 8.739 e 8.740, ambos de 19/1/1946) que promoviam uma reforma sindical que acabava com a possibilidade de o sindicato impor contribuição sobre toda a categoria, e acabava com a representação ampla do sindicato, que passaria a restringir-se aos sócios.  Mas após a eleição de Eurico Gaspar Dutra em dezembro de 1946, os dois decretos foram tornados “sem nenhum efeito”, conforme o então Decreto-Lei nº 8.987-A, de 15/2/1946.

Mudança significativa só ocorria sob o regime militar, iniciado com o golpe de 1964. O contrato a longo prazo idealizado pela teoria institucionalista sofreu enorme revés. O regime militar descaracterizou o contrato individual de trabalho da CLT, praticamente deixando-o de lado, a começar quando implementou o FGTS, em 1967. O governo militar, distanciando-se do cenário europeu, que impunha obstáculos para as demissões arbitrárias, estabeleceu os alicerces legais para a total dispensa arbitrária, o trabalho precário, a terceirização e a intermediação de mão de obra. Os contratos a prazo sem justificativa, aplicados indiscriminadamente, como o contrato de experiência, são uma invenção dessa época e atingiram fortemente a concepção da CLT.

A Previdência Social foi unificada em 1966, permitindo a rotatividade da mão de obra sem prejuízo da política de assistência à saúde e à aposentadoria. Assim, o trabalhador de qualquer ramo econômico ou profissional passou a poder ser atendido pelo INPS e ter de contribuir apenas para esta nova e única instituição de aposentadoria, acabando os antigos institutos de aposentadoria a pensões por categorias. Com isso perdeu o sentido a estabilidade decenal, oriunda dos regulamentos desses Institutos. É certo que mesmo no governo Vargas esse já era um projeto, o que também demonstra que as mudanças não são só frutos de seus governantes, mas da sociedade.

Poderíamos citar vários exemplos de leis que abriram caminho para contratos curtos, precários, para a terceirização e a flexibilização, vistos na década de 1990 como “novidades”. Além do contrato de experiência, foram criados o regulamento dos contratos de estágio, o Decreto-lei nº 200 de 1967 que tratou da terceirização dos órgãos estatais, e a Lei nº 4.923 de 1965 que permitiu a redução de salário por meio de negociação coletiva. É fundamental citar a Lei nº 6.019 de 1974, que instituiu a figura do trabalhador temporário, abalando fortemente o conceito de empregado da CLT. Esse trabalhador com parcos direitos é cedido por seu empregador (empresa interposta) a uma empresa (tomadora) para lá trabalhar subordinado a esta. Isso, ao arrepio da CLT, que só via o contrato de trabalho de forma bilateral: o empregado subordinado somente ao seu empregador.

A dificuldade de no período FHC (1993-2002) se redigir uma nova legislação, mais flexível, foi enorme, pois ela já existia, só criando efetivamente a novidade do banco de horas. As outras novas medidas foram de pouco efeito prático. Os acordos coletivos de flexibilização é que avançaram, e sem que a empresa estivesse em dificuldade financeira, conforme exigia a Lei nº 4.923 de 1965. Aliás, podemos afirmar, tecnicamente, que essa lei ainda “exige” a dificuldade econômica da empresa para a flexibilização, já que não foi revogada. Ou seja, com respaldo dessa lei e, depois, da Constituição de 1988, a flexibilização avançou, mais uma vez deixando a CLT à margem.

Embora tenha havido enorme repressão política durante o regime militar, não foram feitas mudanças significativas no âmbito da legislação sindical. Isso só aconteceu com a Constituição de 1988, fruto da segunda grande redemocratização do país. Apesar de mantido o imposto sindical e a unicidade sindical, a nova Carta quebrou o modelo sindical da Era Vargas quando afastou o Poder Executivo da administração dos sindicatos, tornando sem efeito quase toda a regulação sindical da CLT. Não houve uma transferência de gerenciamento para o Poder Judiciário, como se pode pensar. O antigo modelo permitia ao Estado planejar e executar unilateralmente o enquadramento sindical, dirimir questões entre sócios e associação, conceder a carta sindical a quem desejasse, fiscalizar eleições sindicais, assembleias, prestação de contas, enfim, gerir toda a estrutura sindical. Já o Judiciário sempre atuou se provocado, quando há conflito de interesses, e para por aí, pois os sindicatos não vivem sem o controle legal e judicial em lugar nenhum lugar do mundo.

Se hoje fossemos apenas utilizar o texto da CLT, certamente haveria um “apagão trabalhista” tal a quantidade de leis do trabalho que não estão no seu corpo. Mas também, por outro lado, alguns temas atuais sequer estão legislados. A CLT não responde, por exemplo, à questão hoje colocada da intensidade do trabalho. A Consolidação foi criada com a concepção da jornada de trabalho contabilizada com início e fim, quando o trabalhador marca seu horário de entrada e de saída em algum controle. Isso ainda é um fato para a maioria dos trabalhadores. Porém, tem aumentado enormemente a intensidade do trabalho, ou seja, tem havido maior carga de responsabilidade e maior quantidade de trabalho dentro da mesma jornada, o que não é respondido por qualquer lei. Alguns juízes condenam os empregadores a pagar um adicional para compensar essa alteração, mas certamente trata-se de tema polêmico.

É o caso da empresa que, para diminuir os custos, demite dois empregados de um setor que era operado por cinco empregados, sendo que os três empregados que ficam passam a ter de fazer o trabalho também dos que saíram. Aí há evidente aumento de carga de trabalho.

As metas agora são cobradas com maior vigor por meio dos avanços da informática, mas quando elas são atingidas o trabalho não para, e logo aparecem novas metas. Não há nenhuma proibição ao empregador de aumentar metas, mas também deveria existir o direito de o empregado ser compensado com o aumento da intensidade do trabalho, que lhe causa danos físicos e mentais.

Concluímos esse breve histórico crítico, afirmando que a CLT além de ser uma importantíssima lei do trabalho, também serve como símbolo para seus apoiadores e críticos. Possui algumas normas centrais que dão sustentação à doutrina do direito do trabalho e às decisões da Justiça do Trabalho, como a teoria da nulidade. Possui normas protetoras aos trabalhadores, mas também garante direitos importantes aos empregadores, como o direito de punir o empregado faltoso, o de descontar salários de empregados que causam prejuízos, portanto, de praticar a autotutela, além de ajudar a regular o próprio mercado empresarial, evitando a concorrência desleal entre os próprios empregadores, o que poderia ocorre se todas as regras do contrato de trabalho estivem livres de serem pactuadas entre as partes. A norma de ordem pública é importante tanto para o empregado como para o empregador, assim como algum grau de interferência do Estado.

Mas, o perfil de relação de trabalho traçado pela CLT já não responde à totalidade de normas e problemas enfrentada pelos trabalhadores atuais. Quando na década de 1990 o desemprego aumentou, verificou-se que a CLT e mesmo o conjunto da legislação do trabalho não tinha uma resposta eficaz. Parecia que a CLT era um privilégio de “poucos” empregados.

A discussão sobre a Convenção 158 da OIT na década de 1990 demonstrava como a CLT não acompanhara as novidades do mundo pós-guerra. A ratificação da Convenção 158 da OIT pelo Brasil e depois sua declaração de inconstitucionalidade pelo STF, deu início a um período de grande avanço das teses de desregulamentação e flexibilização, o que fez com que mesmo aqueles que estavam propondo inovações a favor do trabalhador se agarrassem na CLT, como um boia no oceano. Foi o tempo em que os trabalhadores passaram a ser “conservadores” contra a “modernização” inovadora. A reivindicação dos trabalhadores era não andar para trás.

Passado o período mais crítico do desemprego, quando na segunda década deste século o Brasil passou a ser considerado emergente, onde há um evidente estágio de melhoria econômica e psicológica, surge um momento em que é aberta uma nova pauta de reivindicações com vista para o futuro. O que criamos hoje é o que vamos colher daqui a 70 anos, é o que contamos e depois recontamos, de perdas e conquistas. Até agora só posso dizer que nossos antepassados estão de parabéns...

 



[1] Desembargador do Trabalho. Professor adjunto da Faculdade de Direito da Universidade Federal Fluminense (UFF). Professor permanente do Programa de Pós-Graduação em Sociologia e Direito PPGSD-UFF, Doutor em Ciências Humanas (Sociologia) pela Universidade Federal do Rio de Janeiro PPGSA (2008), Mestre em Ciências Jurídicas e Sociais pela Universidade Federal Fluminense PPGSD (2001), graduado em Direito (1987) e História pela UFF (1980).